A Magnífica História de Jonathas Carruthers - Parte 1
Antes que Jonathas Carruthers se visse enfiado num universo de fantasias geométricas de onde dificilmente sairia sem uma junta de barbudos psiquiatras neo-zelandeses, pôs o pé fora de casa uma vez que fosse naquela primavera que se anunciava com o relinchar de pássaros em sua janela. Na porta se acumulavam contas a pagar, anúncios de salvação da Grande Batata e pedidos de resgate para a sua mãe, sequestrada há dois anos pelo Exército do Congo em uma incursão desesperada para resgatar Nancy Miranda, a macaca albina da bunda vermelha que largara uma promissora faculdade de medicina para procurar seus pais biológicos na selva africana. Foi então que Jonathas Carruthers decidira que precisava de um pouco de normalidade, permanecendo em sua mansão no centro de Iór, onde ao menos o queijo branco nunca estraga desde que mantido em uma posição de 35 graus ao norte de suas memórias de infância.
Na rua já não era novidade que os cães limpassem os cocôs das madames, que sem cerimônia baixavam as calças de grife para defecar na calçada, enquanto basset-hounds super-treinados higienizavam seus ânus brancos com Papel Higiênico Snob. E Jonathas Carruthers já não se espantava mais com o fato de o caminhão de lixo sempre parar justo quando seus pensamentos entravam na retranca do cerebelo, a comentar o estado geral da nação, os ministros de Dilma e a situação do Esporte Clube Bahia.
E se do banco as pessoas saíam sempre com menos dinheiro, do restaurante com mais fome e dos motéis com mais tesão, não era surpresa que ao voltar pra casa estivesse ainda um pouco mais inquieto, embora um tanto mais relaxado, se assim pudesse se expressar – e a verdade é que podia.
Mas se a sociedade não prestava, Jonathas Carruthers se enfiava embaixo dos lençóis e sentia a pele derreter entre romances de Agatha Christie, um ventilador quebrado e a TV sempre nos piores canais possíveis sob o olhar vigilante de Bob, seu poodle rastafari com as cordas vocais cirurgicamente removidas e a tendência a cagar em pelotas. Esse sim, o melhor amigo do homem.
A bem da verdade é que o nosso, porquê não insígne, ou melhor dizendo, magníficamente insignificamente personagem, fazia mais de dez anos empreendia esforço significativo para transcender quaisquer adjetivos que lhe colocassem em indesejável visibilidade. Vale dizer que evitava aquela abjeção tremenda que lhe faria parecer um desocupado notório, fazendo qualquer coisa aqui e ali a justificar-lhe a inação, ao mesmo tempo escusando-se qualquer tipo de sucesso indesejável que lhe pusesse sob os holofotes do inevitável fracasso de sua patente ausência de qualidades pessoais, tais como a vontade de fazer coisa alguma e o desejo de fazer absolutamente nada pelo resto da vida.
Motivo pelo qual a tarefa de escrever os obituários para o jornal da cidade, emprego em que era mantido pelo último de seus amigos da faculdade de jornalismo em que se graduara com brilhantismo quinze anos atrás, quando o sucesso ainda não lhe incomodava como a peste negra, não era tarefa tão penosa entre um rivotril e um misto quente na padaria da esquina.
Então cortaram os obituários.