A Horda

Todos os dias eu acordo pensando que a Horda não está mais lá. Os sonhos bons são poucos e tornam tudo pior. Geralmente sonho com a Horda. Quando durmo, respiro melhor e sem controle. Sonho com um calendário sem marcas. Às vezes me inspiro a escrever algo. Quando o faço, apago no meio do caminho tudo que tinha feito. É uma compulsão, já me disse uma profissional. A compulsão pela palavra perfeita me priva de toda palavra. O gozo mesmo está em corrigir, em cortar algo de si mesmo e com isso sentir-se um pouco mais perfeito.

De vez em quando esqueço da presença da Horda. Escrevo mais distraído, tomo meu café, tiro o almoço do congelador. E a Horda lá. De vez em quando escuto um assovio de gelar a espinha, seguido de urros animalescos. Eu não lembro mais quando a Horda chegou, mas desde então meus dias foram cobertos de noite e poeira. Para mim a Horda não tem cor, se cobre de sujeira e panos pretos. Quando amanhece tenho a impressão que se aproximaram um pouco, fechando o cerco sobre mim. Mas a Horda nunca chega. Parece ter prazer em me atormentar. Por duas vezes a carcaça de um corvo se chocou contra minha janela. Não foi uma coisa ruim, pelo menos me comuniquei com alguém. Tive de abrir a janela para limpar o sangue, mas a Horda não fez nada. Existe uma certa cortesia entre mim e a Horda. Eu nunca reclamo de seus avanços diminutos, eles nunca me empalam e comem minha vísceras.

De todas as coisas, a pior consequência da Horda é afastar minhas visitas. Eu tinha amigos e uma namorada, antes da Horda. Me visitavam regularmente. Por outro lado, existe algo de acolhedor em ser rodeado pela Horda. Eu nunca estou sozinho. Às vezes converso com ela. Pergunto se querem vir almoçar, ou o que acharam da última temporada de Walking Dead. Porque a Horda, por selvagem que seja, não cortou minha internet. Sigo contando a todos sobre a Horda, mas ninguém acredita em mim. Pensam que sou mais um fenômeno virtual, piada interna de um grupo que eles não conhecem. Não acreditam que a Horda pode vir pra eles também, batendo seus pedaços de ferro nas armaduras de bronze e lata de óleo. Às vezes os urros da Horda parecem ganhar uma forma de ordem, como se obedecessem a um comandante secreto. Mas isso dura pouco, e logo se entregam a uma algazarra tétrica. Não sei há quanto tempo eu vivo com a Horda, nem por quanto tempo ainda vou enxergar suas figuras tenebrosas. Tenho medo de acordar e não encontrá-los. Porque, de uma certa maneira, aprendi a amar a Horda. Sinto-me seguro em seu abraço pós-apocalíptico.

Hoje de manhã eles se aproximaram um pouco mais do que o normal. Em geral tenho a impressão que, quando durmo, fazem o mesmo movimento para trás, se mantendo sempre na mesma condição de quieta ameaça. Mas não, não estou enganado. Hoje fizeram um avanço considerável. Eu já consigo ver as suas faces. Todos têm o mesmo rosto, são todos um e a Horda. Suas bocas carregam um sorriso permanente, salivando como animais raivosos. Mais um passo. Parecem neandertais. A Horda se aproxima a passos firmes, em uma marcha sombria. Chegam com estardalhaço; o ruido dos passos misturado ao bater de tambores e metais. A casa é atingida por pedras, logo o telhado vai ceder. Uma dos projéteis irá certamente me atingir, e o meu corpo esmigalhado servirá de estandarte para uma nova caminhada. Talvez eu não morra com primeiro golpe, talvez eu seja despedaçado aos poucos pelo furo de mil lanças. Só estou certo de que logo tudo isso acaba. Os passos diminutos, as ameaças, os corvos na janela. Tudo vai acabar, finalmente tudo vai acabar. Deixarei de existir e nunca mais a Horda. Nunca mais.

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