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A Horda

Todos os dias eu acordo pensando que a Horda não está mais lá. Os sonhos bons são poucos e tornam tudo pior. Geralmente sonho com a Horda. Quando durmo, respiro melhor e sem controle. Sonho com um calendário sem marcas. Às vezes me inspiro a escrever algo. Quando o faço, apago no meio do caminho tudo que tinha feito. É uma compulsão, já me disse uma profissional. A compulsão pela palavra perfeita me priva de toda palavra. O gozo mesmo está em corrigir, em cortar algo de si mesmo e com isso sentir-se um pouco mais perfeito. De vez em quando esqueço da presença da Horda. Escrevo mais distraído, tomo meu café, tiro o almoço do congelador. E a Horda lá. De vez em quando escuto um assovio de gelar a espinha, seguido de urros animalescos. Eu não lembro mais quando a Horda chegou, mas desde então meus dias foram cobertos de noite e poeira. Para mim a Horda não tem cor, se cobre de sujeira e panos pretos. Quando amanhece tenho a impressão que se aproximaram um pouco, fechando o cerco sobre m

Coerência

é tão estranho que uma pessoa Pense ser pra sempre a mesma Mesmo depois de muito tempo Pois, mesmo que lhe pareça, Uma versão melhor de si mesma Mesmo idêntica, no espelho Talvez seja um semelhante Uma paródia, uma piada Algo velho, algo sem uso como uma casa, e ao redor uma árvore chamada tempo até que um dia não há mais casa não é mais casa é só o tempo é o rastro por onde vai o relógio de sua passagem que se conta em suas entranhas suas brechas, suas pilastras umas caídas, outras rachadas sua triste decadência

E desejaram jamais acordar

- Estamos sonhando? - Não sei, meu bem. Realmente não sei. - Parece real, não é? - É verdade. - E como estamos velhos!  Não é surpreendente? - Nem tanto. - Sim, mas eu pensei que... bem, eu pensei, mas talvez todo mundo pense a mesma coisa. É uma bobagem, afinal. - O que você pensou? - Eu pensei que com a gente seria diferente. Velhos, sem dúvida, mas altivos e sábios, decantados de  aventuras. Algo nobre desse tipo. Mas não. Somos os mesmos, embora mais feios. - Às vezes, após me calar para dar efeito a uma frase, me surpreendo com a indigência de meus pensamentos. Um desavisado poderia dizer "ele matuta grandes problemas" enquanto tento lembrar o conteúdo de meu almoço. É difícil fazer pra dentro o teatro que se faz pra fora. - Mas, afinal, quando ficamos tão velhos? - Pra falar a verdade, nem sei como chegamos aqui. - É mesmo um lugar tenebroso, tenebrosíssimo. Vemos tudo, embora esteja escuro. E não há como repousar as pern
No sono antes dos sono o ente dormita em si mesmo canta palavra muda, inscreve no mundo o seu número o nascer e o pôr do sol o traçado imperfeito do rio a gaivota em seu mergulho arrojado, belo, quadrático todos bem antes sonhados na profundeza densa de um cálculo matemático

atrás dos dentes

se mostra sempre feliz e fala sempre de amor um riso gasto no rosto para esconder uma dor e em tudo ela enxerga um verso a cada passo uma valsa de belo e também de vazio ouro falso e marmelada óculos grande na cara café tomado sem cor janela que dá pro concreto virou passarinhos em flor e enquanto ela canta amores não sei esconder a frieza pois sempre que alguém muito grita eu vejo encoberta a tristeza

A Musa

te olhei uma vez lá no ônibus outra na fila do pão te vi dar risada escondida e pegando a moeda no chão depois distraída na fila de mim você nem desconfia foi coisa de um dois minutos te amei mas passou no outro dia

Gesto

vi em você um traço um gesto sem fim colocado vi frase vi reticência suspiro pela metade e olhar desencontrado da pergunta ainda não dita sequer pinçada talvez da trama'inda inaudita que a noite não tarda ou finda mas calma que o sol já vem