E desejaram jamais acordar

- Estamos sonhando?

- Não sei, meu bem. Realmente não sei.

- Parece real, não é?

- É verdade.

- E como estamos velhos!  Não é surpreendente?

- Nem tanto.

- Sim, mas eu pensei que... bem, eu pensei, mas talvez todo mundo pense a mesma coisa. É uma bobagem, afinal.

- O que você pensou?

- Eu pensei que com a gente seria diferente. Velhos, sem dúvida, mas altivos e sábios, decantados de aventuras. Algo nobre desse tipo. Mas não. Somos os mesmos, embora mais feios.

- Às vezes, após me calar para dar efeito a uma frase, me surpreendo com a indigência de meus pensamentos. Um desavisado poderia dizer "ele matuta grandes problemas" enquanto tento lembrar o conteúdo de meu almoço. É difícil fazer pra dentro o teatro que se faz pra fora.

- Mas, afinal, quando ficamos tão velhos?

- Pra falar a verdade, nem sei como chegamos aqui.

- É mesmo um lugar tenebroso, tenebrosíssimo. Vemos tudo, embora esteja escuro. E não há como repousar as pernas.

- Sente-se no chão, aqui do meu lado. Você ainda tem o meu colo.

- O que seria de mim sem você. Saber disso me envergonha ainda mais, pois, devo confessar, não me lembro mais de seu nome.

- E se eu lembrasse do seu, poderia até  me ofender.

- Estamos perto de acordar? Não aguento mais essa carne velha.

- Certamente, meu amor, isto é um sonho, mas não mais que todo o resto. O tempo é um pesadelo do qual nunca se acorda, e a velhice o castigo de quem se recusa a morrer.

- Não fale asneiras. Isso passa em um minuto. Vamos acordar jovens e belos, como sempre. Como eu me lembro de você, como você lembra de mim. Sim, vamos acordar, e então tudo estará bem.

- Tem razão. O pesadelo logo acaba, e voltamos em nossos corpos.

- ...essa conversa me deu sono. Boa noite, meu amor.

- Boa noite, meu anjo.


E desejaram jamais acordar.

Postagens mais visitadas deste blog

A Horda

"me pergunte dos porquês"